quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Saltos

Já compete há anos naquele esporte. Quantas medalhas levou para casa com seus saltos precisos. Coleciona alguns ouros, pratas e bronzes. Não curte mostrá-los em sua parede, como muitos atletas o fazem. Conta para um ou para outro o que aconteceu na competição anterior: se foi qualificado para disputar a semi-final ou final; se conseguiu subir no pódio. Mas nunca contou vantagem, apesar das trocas de experiência com outros atletas, enquanto esperava a hora de saltar.

Começou cedo, logo após aprender a nadar. Nunca teve medo de altura. Vivia treinando pulos da janela de sua casa para dois colchões postos, de forma estratégica, para amortecer suas estripulias. Sempre ouvia os gritos da mãe dizendo para “não fazer arte”. Resolveu então comentar na escola de natação que gostaria de praticar outro esporte. Nadar seria apenas parte do treino, já que adorava estar na água.

Quando deu por si, já estava saltando das plataformas de três metros. Mas não cansava de olhar mais para cima. Sabia que seu objetivo era bem mais alto. Às vezes, doía o pescoço de tanto que fitava os mais velhos pulando. Aplaudia, incentivava, torcia. Aguardava, ansioso, a hora de galgar maiores conquistas.

Já tinha medalhas amadoras de pequenas competições. Parecia que tinha talento nato. Suas acrobacias encantavam. Mostrava seu potencial. Mas seu objetivo eram as Olimpíadas. O tão sonhado encontro com os deuses. A cada mortal, carpada, grupada, ele sentia que chegava mais perto do Olimpo.

Começou a competir nas plataformas de dez metros. Adorava a visão do horizonte em um ponto tão acima do chão. Corria e se jogava. O coração sempre disparava. O frio na espinha sempre corria a cada desprender para o “vazio”. Buscava sempre ser um ao tocar na água. Sua meta sempre foi a suavidade de subir na plataforma a cair na piscina.

A vontade de competir nunca o impediu de fazer outras coisas. Continuava seus estudos, suas amizades e suas viagens. E foi pelas viagens que começou a querer competir fora de casa. Sempre acompanhara as competições nacionais e internacionais. A cada novo lugar visitado, queria sempre incluir um espaço próprio para saltos. Sabia que era destemido e sempre ia pronto para pular.

Fez sua primeira inscrição em uma competição fora de casa. Resolveu ir um tempo antes, para treinar no novo ambiente. Queria se familiarizar com a piscina, com a água, com a plataforma. O conhecimento era essencial para seus saltos. Fazia parte da preparação.

Enfim, chegou o dia. Arquibancada cheia, torcida de cada competidor, de cada estado. Ao longe, em um cantinho, via o seu tímido grupo. Não deu para todos viajarem. Mas sentia que tinha que fazer o melhor para si mesmo e para os que agitavam e aplaudiam.

Chamaram seu nome. Subiu as escadas levemente, controlando a respiração para chegar bem aos dez metros. Necessitava de equilíbrio, de concentração. Ia subindo e mirando seu alvo. As marolas de saltos anteriores ainda percorriam aquela superfície azul. Seu ritmo lento era para poder pular na tranquilidade das águas. Chegou ao topo. Olhou mais uma vez para baixo e sorriu. Um sorriso farto, cheio de dentes. Sentia que era a coisa certa a fazer. Não passava perto a vontade de desistir. Preparou-se. Queria o salto mais belo de sua vida. Buscou relaxar e não ficar ansioso. Sentia o vento no rosto e o frio a comer-lhe o estômago. Ouviu o apito. Saltou.

Seus movimentos o traíram. Sua perna escorregou e caiu feio na água. O choque da queda machucou um pouco. Sentia a queimação na pele. Mas o aperto no coração era o pior. Não acreditou no que havia acabado de acontecer. Seus sonhos indo pelo ralo. O horizonte já não estava mais tão claro. A visão ficou um pouco turva com tamanho desapontamento. Ainda tinha mais quatro chances. Mas a vergonha e o medo o tomaram de uma forma que ele correu para o vestiário. E depois voltou para a sua cidade. Para os seus.

Anos se passaram e ele não competia mais. Aqui e ali arriscava um salto. Nada de grande impacto. Quando queria praticar, com saudades daqueles tempos em que se sentia dono da situação, ia treinar a noite. Ninguém via e nem ouvia. Fazia tudo sem medo, já que não o fitavam.

Até que um dia, seu antigo treinador o incentivou a voltar a competir. Poderia começar nas amadoras, já que o clube da cidade tinha provas todo mês, na busca de novos talentos. Decidiu passar uma borracha no passado e voltar a treinar forte. Mas sentia que ali não chegaria a ser o atleta que sempre sonhou.

Resolveu sair pelo mundo em busca de um novo clube para treinar. Achou um que o recebeu bem e que havia gostado. Sentia-se em casa. Parecia que havia nascido ali, em meio àquela piscina. A motivação foi maior. O desafio era maior. O frio que percorria a espinha provocava um sorriso. Sabia que era o mais certo a fazer.

Passou a treinar forte. Cinco. Seis. Oito. Dez horas por dia. Musculação, natação, acrobacias em solo, trampolim, plataforma. A rotina era dura. Mas estava disposto a seguir em frente e mergulhar fundo.

Fez a primeira competição local. Já não havia mais o nervosismo de outrora. Estava mais que focado. Sabia o que queria. Seus saltos foram bons. Viu placas de 8.0 a 9.0. Recebeu um único 10.0 em seu quarto salto, que foi o melhor. Mas, na pontuação geral, não passou do sexto lugar. Comemorou como se fosse uma medalha. Afinal, fazia anos que estava longe dos saltos competitivos.

Outra competição, a primeira medalha. Prata. Reluzente. Brilhante. Pela cor, achava-a mais bonita que a prima dourada. Mas queria a que levasse ao ponto mais alto. À que permitisse falar com Zeus. E não demorou muito para vir.

A competição foi longe de sua nova casa. A sensação da primeira vez que viajou para saltar voltou, mas já estava maduro para não cometer os erros que o afastaram das plataformas. Seus cinco saltos foram perfeitos. Saia da piscina sendo ovacionado pelo público presente. Jornalistas corriam em sua direção. A timidez, sempre presente, fazia-o dizer poucas palavras. Jogou-se com tudo na água após o último competidor saltar e não conseguir superá-lo nos pontos.

Ouro. Louro. Altura. Glória. Tudo aquilo mexeu com ele. Sabia que queria aquilo, mas que não tinha nascido para a fama. Jornais estampavam seu feito. Pela primeira vez, se viu como um herói.

Competições vieram e outras foram. Começou a colecionar de medalhas. Não sabia mais viver sem competir, independente se pontuava ou não para o ranking nacional. Mas o destino ainda reservada a grande competição que o levaria para o sonho olímpico. Soube de mais uma. Inscreveu-se. Precisou viajar. Pegou seus apetrechos e partiu rumo a mais um desafio.

Preparou-se. Concentrou-se. Não conseguiu ir antes para conhecer o ambiente. Eram poucos dias. Um ou dois de treino e mais uns de competição, caso fosse para a final. Foi lá e fez o melhor. Classificou-se. Mal dormiu a noite, ansioso pela grande final. Acordou, fez o que tinha que fazer ao longo do dia, antes da decisão. Todos começaram a saltar. Chegou mais uma vez o seu momento. Subiu e pulou. Ao cair na água, sabia que poderia ter feito melhor. Aguardou o resultado e contentou-se com os 7.5 e 8.0 que recebeu.

Inspirou fundo mais uma vez e foi para o segundo. Dessa vez, arriscou-se mais. Queria mais. Conseguiu um 9.3 de máxima. Gargalhou. Sabia que estava entrando no ritmo. Concentrado, partiu para o terceiro salto. Desta vez, plantou bananeira na ponta e saltou. Os movimentos foram precisos. Levantou pouca água. Ouviu a vibração do público enquanto emergia. Olhou para o telão e viu notas entre 9.5 e 10.0. Socou o ar.

Já estava em segundo na classificação geral. Sabia que se quisesse o ouro, o próximo salto deveria ser o mais arriscado, a fim de ter vantagem sobre o outro concorrente. Subiu calmamente, tentando controlar a já ofegante respiração. Preparou-se e foi ao encontro da água mais uma vez. Mas um novo escorregão o fez bater na plataforma e cair. Além de perder os pontos, se machucou feio. Batera primeiro a perna ao cair, depois a cabeça na borda. Foi socorrido.

Abandonou a competição rumo ao hospital. Exames, tomografia, repouso. Ficou ali alguns dias. Quieto. O monitoramento era necessário. Ao receber alta, ainda sentia dor. Mas nada que sessões de fisioterapia não o reabilitassem para novos saltos. Meses sem competir. Treinava pouco. Passou a acompanhar mais os campeonatos pela televisão e internet. Viu um que despertou sua curiosidade e aguçou a vontade de participar.

Decidiu voltar a treinar para mais uma competição de saltos. Perdera o medo e a vergonha de falhar. Sabe que vai dar o melhor de si para levar a medalha de ouro para casa. Rotina excessiva de exercícios, além de umas sessões de fisioterapia.

É chegada a hora da competição. Mais uma viagem. Mais um desafio. Mais um frio a congelar o estômago. Mais uma vez ali, no alto, a mirar todos e seu alvo azul. Treina e se aquece. Conhece um pouco o local da competição. Ansioso, aguarda que chamem seu nome para se dirigir à área de saltos. Quer ir para a final e sabe que vai fazer de tudo.

Sobe com certa pressa. Escorrega um degrau, mas nada grave. Aquilo não vai tirá-lo de sua meta dourada. Mais uma vez na ponta. Mais uma vez o azul prender sua visão. Sabe agora que é respirar fundo e mergulhar. Respira e salta mais uma vez para o desconhecido, a espera do que vai acontecer ao chegar à água.

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