segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Dia Frio

Mais um final de semana chegou na vida de Carlos. Sua vidinha de casa para o trabalho e do trabalho para casa já o cansava fazia meses. Algo não deixava que isso mudasse. Parecia estar preso a um carrossel. Via sempre as mesmas coisas, as mesmas pessoas. Tentava fugir e não conseguia.

Já não tinha mais paciência para cozinhar. Abusou de seu próprio tempero. A comida sempre com o mesmo gosto. As mesmas especiarias. Já havia virado um hábito. Até a ordem com que punha na panela. Azeite, alho, cebola, tempero, frango, água, alecrim. Quando fazia uma mudança, colocava noz moscada ou ervas finas. O manjericão acabou meses atrás.

Mas ele acordou diferente naquela dia. Olhou pela janela a fina chuva que cobria a cidade. Não se percebia muito bem os prédios. Parecia uma neblina. O céu nublado, mas claro. Havia luminosidade. Ele sentia que o dia seria diferente. Abriu a janela e o vento frio tomou conta do ambiente. Sua sorte foi o agasalho que usou para dormir. Um arrepio percorreu sua espinha. Mas não lhe deu medo.

Arrumou a casa como de costume. Fazia anos que estava no dilema da solidão. Não se curou do passado. Passado este que o assombrava em sonhos, o perseguia em músicas. Mas naquele dia tudo era diferente. Ouviu uma música antiga. Séculos que seus tímpanos não eram invadidos por aquela melodia. Sabia que possuía alma. Que não era mais um no meio dos que marcham. Um sorriso torto tomou-lhe a boca.

Resolveu sair. Sabia que precisava de uma caminhada, mesmo que a chuva caísse mais forte. Sentia-se bem para aquilo. Colocou a bermuda, trocou a camisa, calçou o sapato. Parada estratégica no banheiro. Pente, escova de dentes, fio dental. Sorriso colgate. Riu de si mesmo refletido. Sempre riu de sua aparência. Adorava brincar na frente do espelho.

Entrou sozinho no elevador. Raramente encontrava vizinhos. No máximo via o ranzinza do andar de baixo. Mais um espelho. Desta vez, nada de sorrisos. A câmera o intimidava. Sua timidez era catapultada. Despediu-se do porteiro e tomou o caminho da rua. Carros, pessoas, semáforo, asfalto. Aquela cidade de concreto não impunha medo. Conhecia-a bem, afinal, fora criado em meio ao caos.

Caminhou por um tempo e sentiu fome. Não tinha como apreciar a paisagem devido a leve chuva. O guarda-chuva se fazia necessário, mas era um fardo a carregar. As pessoas andavam sem. Porém, tinha medo de gripar. Não queria ficar doente, ainda mais em sua longa solidão. Seu estômago pediu comida e ele entrou no restaurante. Já havia estado ali. Anos atrás. E não tinha ido só. Lembranças quiseram voltar, mas ele bloqueou. Carlos se conhecia.

Serviu-se com o de sempre. Alface, tomate, um pouco de brócolis. Pensou: frango assado ou bife à milanesa? Ficou com o peixe frito. Pesou e foi se sentar. De repente, olhou pra frente e a viu. De quem seriam aqueles olhos curiosos. Chegou a pensar que estava com a roupa suja. Olhou para baixo. Tudo limpo. Olhou para frente. Os olhos estavam em outra direção. Sentou, pegou o sal, garfo e faca em punhos. Todo o ritual começara. Levantou a cabeça e deu de cara com eles. Olhar curioso e disfarçado em sua direção.

Come devagar, como sempre. Resolveu olhar também. Pegaram-se trocando olhares. Não tem coragem de sorrir. Não ganha sorriso. O estranho é que se entendem no olhar. Tentou esperá-la, mas não deu. Terminou antes. Pagou a conta e saiu. Caminhou devagar. Viu quando ela saiu, mas foi em outra direção. Encheu-se de esperança. Depois de anos, conseguiu flertar. Precisava apenas aprender a trabalhar a timidez.

Voltou andando para casa. A chuva teimava em cair, mas sabia que o melhor era caminhar. Precisava pensar. Nada como fazer isso sem pressa. O vento frio batia em seu rosto. Conversou consigo mesmo. Brigou internamente. Riu. Falou sozinho. Fazia tempo que não sentia aquilo tudo junto.

Ao entrar no apartamento, tirou a roupa na sala mesmo. Depois arrumaria a bagunça. Colocou o moletom e deitou na cama. Ligou a TV e ficou zappeando. Futebol, séries, filmes, documentários. Parou um pouco em um sobre dinossauros. Encheu-se. Levantou e colocou um DVD. Sabia que não passava nada melhor aquele horário. E parecia que tudo era ruim por causa do frio que fazia. Mas ele gostava do frio. Sabia que estava “em casa” a baixas temperaturas.

Com meia hora de filme, seu celular toca. Estranhou. Além de não o procurarem nos finais de semana, aquele tocar lhe foi familiar. Conhecia a melodia. Sabia a quem pertencia. Fazia anos que não ouvia a música. Afinal, ela sumiu sem dizer adeus. Não sabia o paradeiro. Nem por onde procurar.

Atendeu confuso. Não sabia o que dizer. Muito menos o que iria ouvir. A doce voz do outro lado o cumprimentou. Carlos ficou nervoso. Respondeu, com voz trêmula, que estava tudo bem. Comentou sobre a surpresa da ligação. Ela perguntou se ele estava em casa e ouviu que sim. Perguntou se poderia subir. Ele pulou. Pensou rapidamente no que estava acontecendo. Disse que sim e se havia acontecido algo. Ela queria conversar pessoalmente.

Tomado pelo susto, correu para recolher as roupas molhadas de chuva que ficaram pelo caminho. O coração parecia querer saltar-lhe pela garganta. Lembrou do último encontro. De quanto ele foi bom. Da troca de carinho e de afeto. Das juras. Anos se passaram em segundos por sua cabeça. Congelou ao ouvir a campainha. Viu-se no espelho e sabia o que fazer. O vento frio que entrava pela janela aberta não o assustou.

Pronto. Estava cara a cara com o passado. Imaginou por anos aquele reencontro. Havia ensaiado várias vezes o que dizer, o que fazer. Foi incapaz de proferir o texto decorado. Apenas sorriu. Um abraço juntou mais uma vez aqueles corpos que tanto tempo estiveram juntos. Outro arrepio lhe correu pela coluna. Sua sorte era o moletom. Ficou imperceptível.

Ouviu aquela voz mais uma vez. Primeiro, um suave pedido de desculpas, de perdão. Disse que não precisava daquilo. Ela quis se explicar. Ele a impediu, dizendo que o que passou, passou. Só queria saber em que poderia ser útil. Sentiu-se frio ao dizer aquilo. Mas não foi de propósito. Tinha consciência de que não queria magoá-la. Ela pediu que apenas a ouvisse e assim o fez.

O vento frio o incomodou. Foi fechar a janela. Aproveitou e ofereceu algo: água? Suco? Café? Ela disse que água estaria bem. Lembrou da forma como sempre foi: um copo com muito gelo e pouca água. Mesmo no frio, sempre bebeu água assim. Ela sorriu ao ver que ele se lembrou de seu gosto. Não conseguiu disfarçar aquilo. Manuela olhou em volta e reconheceu o ambiente. Sentiu-se em casa, apesar que não queria. Sabia que sua chance já ocorrera.

Ela não queria explicar o que houve. Viu que tinha que procurar Carlos. Sabia que ele era algo mais. Ele simplesmente a completava. Demorou a enxergar isso. Falou sobre tudo isso com ele. Não sabia como seria a reação dele, mas tinha certeza que precisava falar aquilo para viver. Queria lutar por ele. Queria ele.

Carlos ouviu tudo. Não tinha forças para reagir. Era tudo o que ele sempre quis. A mulher de sua vida, sua alma gêmea, seu ar. Ela, ali, falando tudo o que sentia e o que queria. Os dois estavam vulneráveis. Ele quis abraçá-la e dizer que nada mais importava, desde que ficassem juntos. Conteve-se. Sabia que tinha que ouvir tudo, afinal, ela sempre soube o que ele sentia.

Por impulso, passou a mão em seus cabelos. Lembrava com cuidado de cada fio. Suas narinas foram invadidas pelo cheiro das madeixas. Sua pele sentia a maciez de tudo. Percorreu seu rosto e encontrou lágrimas. Notou que as suas também escorriam. Olhos nos olhos. A resposta para tudo já havia sido dada.

O homem amargurado sempre soube que a perdoaria no dia em que batesse a sua porta. Ele nunca deixou de amá-la. Foram anos. Sabia que ela era sua, assim como sabia que era dela. Era algo além. Tudo transcendia entre os dois. Foi assim desde o primeiro encontro. Quando passaram um noite inteira conversando a beira mar e se beijaram aos primeiros raios do Sol. Aquilo tudo havia selado o destino de ambos. Duas almas errantes que se encontraram para viver juntas.

Manu e Carlos, abraçados, olhavam pela janela e viam a chuva cair sobre a cidade. O frio tomava conta de todos, menos dos dois, que estavam juntos para se aquecerem. E ficaram ali, curtindo-se ao som das gotículas que teimavam em bater na janela.

Um comentário:

Amanda disse...

Tô começando a ficar com medo dessa nossa ligação... ontem assisti um filme bem água com açucar, mas que me fez refletir justamente sobre a espera do momento certo para viver com quem amamos. Por vezes precisamos caminhar um tempo sozinhos para aprendermos a caminhar lado a lado com alguém.
Belo texto!